Do avesso, um verso se ajeita ...




sexta-feira, 15 de abril de 2011

Um jardim, uma menina, o silêncio!

Até os 8 anos de idade eu era uma criança normal. Como todas as outras [ou, ao menos, como a maioria] eu acordava às 6 horas, ia para escola, as aulas começavam às 7 e meia. Brincava de “casinha” durante a tarde e à noite ia para a esquina, mais precisamente na rua A. Lá estavam meus companheiros de “bandeirinha guerreou”, “sete cacos”, “se esconder”, “trisca”, “cada macaco no seu galho”, e outras tantas que cada noite renovava as energias para um sono mais cheio de vontade. Aos 9 anos mainha nos levou para outra casa, n’outra cidade, n’outro estado e, de primeira e finita impressão, outro horizonte [nos tantos sentidos que você for capaz de aludir]. A rua era estranha, deserta. Não tinha mais do que 5 casas, estas bem afastadas umas da “minha” .. minhas tarde não tinham mais “casinha”, dormíamos cedo pois não podíamos sair, era feio lá fora, só grilos, só sapos, só nadas .. Sem amigas a opção era brincar com meus irmãos [e que bom que os tenho, né?], só lamento eu ser minoria, eles sempre tinham o privilégio de escolher as brincadeiras e, como sempre, eu sempre ficava com a ‘pior parte’ delas ... pião – o meu sempre era o alvo e quebrava; pipa – sempre cortavam minha linha e rasgavam-na só por ser a mais bonita; polícia e ladrão – eu era a polícia , nada contra, mas que é chato ser polícia, ah é! ¬¬; Power ranger – o que implicou em hematomas por todo o corpo e um olho quase cego; futebol – eu era goleira ‘-‘ e pesca, que dentre todas era a que eu mais gostava, apesar de ser sempre eu quem tinha de enfiar a mão na lama para pegar as minhocas ou matar aqueles calangos feios para servirem de isca [ai, como ainda hoje eu tenho nojo dele, argh!]; É, eu sofri .. mas eu era bem feliz! Na minha rua tudo me causava medo. O mato do lado esquerdo, o açude fundo aos fundos, uma olaria abandonada à direita, uma casa lá em cima, no topo da ladeira, e em frente, ele, lá estava, bem na minha janela: o cemitério.

Nossa como era estranho amanhecer e ao abrir a janela a primeira visão ser grandes cruzes em cima de enormes ‘catatumbas’. Era como se a cada manhã elas nos lembrasse que breve, bem logo, estaríamos ali dentro .. O cemitério era enorme, muro baixo, sim, mas comprido. Sua extensão ia quase até o centro da cidade. Para irmos para escola gastávamos quase 30 minutos para fazer a volta, “arrudiá-lo”. Todos os dias, mais pelas tardes, chegavam novos moradores no cemitério. Os choros me atraiam para o basculante da janela. Muitas pessoas, uma só ficava. Ficava. Só!

Fiquei triste, por um instante, imaginando-me só, ali .. Uma noite chuvosa .. a rua ficou alagada. Sem calçamento, a abundância de água provocara enormes buracos, barrancos de lama, nem carro, nem moto, bicicleta, quem dirá a pé .. impossível passar. Era dia de avaliação na escola. Mamãe, como sempre, achara solução para tudo. Pelo cemitério havia uma passagem, uma estradinha, uma parte do muro quebrada. Entraríamos e sairíamos quase no centro, na rua calçada, à poucos quilômetros da escola. Fomos. Eu e meu irmão. Um gesto que me deixou e, depois desse dia, deixava cada vez mais feliz me marcou essas idas pelo cemitério: ‘as nossas mãos dadas’. Um protegia o outro ao tempo em que era protegido, ou queria sentir-se assim. Entre cruzes, flores, covas, sepulturas imensas e enormes, atravessamos o medo. Enfrentamos, de mãos dadas, a sombria visão que nos fazia não abrirmos a janela de casa. Vez em quando eu me permitia ler alguns nomes, algumas mensagens de despedidas, umas frases, fotos aqui e ali .. imaginei-os na minha mente. Suas vidas, suas histórias, agora vazios espaços, saudades permanentes! Quanta gente ali calada. Quanto silêncio. Quanta paz ... Passaram-se os dias chuvosos, mas continuávamos caminhando pelo jardim silencioso. Algumas vezes com meu irmão, outras sozinha. Algumas vezes, sem perceber, estávamos apontando covas, admirando algumas sepulturas pintadas de preto, outras de azul, algumas com azulejos cheios de flores .. dias nos deparávamos com despedidas. Mais um morador no jardim, mais um para completar silêncios. Ricos, pobres, negros, brancos, idosos, crianças, mães, pais, filhos, mulheres, adolescentes .. era ali que eles findavam quando não acordavam mais. Todos! Do mesmo modo. No buraco, coberto de terra!

Eu me vi crescendo.. 12 anos. O que eu era? O que agora sou? Uma menina, num jardim. Quando queria silêncio, eu ia para lá. Passeava entre os corredores de moradias eternas, vezes me atrevia a conversar com eles [não, não chegava a ouvi-los, eles são quietos demais]. Mas o silêncio .. ah, este sempre me agradara. Eu gosto da voz mansa do silêncio, ela me deixa ouvir a minha com mais nitidez. Hoje, os mortos não me assustam mais. Aprendi com eles o quão efêmera é a vida, o tempo em que sua importância é incalculável. Enquanto acesa, valorize-a. Depois de pálida, cessam os sonhos, os sons, os segredos, os sentidos .. não tenho medo dos mortos, não mais. Hoje, tenho pena dos vivos!

2 comentários:

  1. "Mas o silêncio .. ah, este sempre me agradara. Eu gosto da voz mansa do silêncio, ela me deixa ouvir a minha com mais nitidez".

    Muito lindo. Aliás, tudo muito lindo por aqui!!
    Seguindoo'o'o

    Segue o meu também> flores-na-cabeca.blogspot.com

    Abraçoo'o'

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  2. aah, que linda *--*. Obrigada moça! Claro que te sigo ;)

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